Tentativas Vol. 2
O Rafael de 2014 me lembrou que eu não posso jamais esquecer de tentar, mesmo desanimado e descascando o rejunte do fundo do poço, nunca esquecer de tentar!
Escrevendo um próximo texto para essa newsletter singela, que vocês carinhosamente recebem, me lembrei de uma banda independente de São Paulo, se não me engano, que fazia um som massa e com letras sensacionais. Eles cantavam palavras completamente inventadas, imagino que criadas pela sonoridade. Cantavam em uma língua que não existe, eles apenas cantarolavam sons.
O problema é que eu não tenho ideia de qual era o nome da banda. Eu tinha um CD deles, que tinha um título gigantesco. Eu comprava CDs na Velvet Discos, em São Paulo. Naquele tempo, mandava e-mail dizendo quais CDs queria e o endereço. Esperava ansiosamente pela encomenda, porque não tinha rastreio nem nada.
Aí, me lembrei de um blog que eu criei quando já estava largando mão do curso de Medicina, o primeiro post é de setembro de 2010. Eu levava o notebook para a aula e ficava fazendo os posts, que eu só largava algumas informações sobre a banda ou comentários do tipo: “Banda muito foda” e coisas do gênero.
Começa a ficar mais legal em julho de 2011, quando, pela primeira vez, eu larguei um: “Boa pirocada!”, no post do Sheik Tosado. A partir daí, tem cada vez menos texto, mas algumas pérolas, com esse verbo que eu havia criado:
“Piroquem a vontade!”
“Piroquem e se divirtam!”
“Boa pirocada a todos…”
“Melhor resposta à uma crítica que uma pessoa poderia dar nesse mundo!!!! Resposta digna de uma boa pirocada!” - no post do EP Tribunal do Feicibuqui, do Tom Zé
“NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOOOOOOO” - Essa foi minha crítica ao disco Foo Metal Jack, d’Os Mutantes. Só tem a capa do disco e isso
“Piroquem a vontade…”
E várias vezes o “Boa pirocada”
Além das músicas, apareceram alguns poemas eróticos. Nessa época, não lembro como começou, mas eu declamei uns poemas durante os shows do Godfather Blues, ou shows deles com o Seres Inteligíveis Vindos do Hiperurano, que enchia o Tribos de maluco. A cerveja acabava umas três, quatro vezes nessas noites. Compravam mais, chegava quente e não durava quase nada. Repetia-se o ciclo. Foram noites divertidas e totalmente alcoólicas, ou mais. Dois deles:
A Língua Lambe
A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.
Carlos Drummond de Andrade
EPIGRAMA
Amar, foder: uma união
De prazeres que não separo.
A volúpia e os desejos são
O que a alma possui de mais raro.
Caralho, cona e corações
Juntam-se em doces efusões
Que os crentes censuram, os loucos.
Reflete nisto, oh minha amada:
Amar sem foder é bem pouco,
Foder sem amar não é nada.
La Fontaine
E coincidentemente, na terça-feira, o Carlinhos me mandou um áudio no Instagram, depois de anos sem nos falarmos: “Eu tava lembrando de um rolê icônico que rolou, acho que no Asterisco, um rolê que você fez umas leituras de uns poemas eróticos. Eu me lembro muito bem dessa imagem, do senhor lá no palco lendo os poemas. Você consegue lembrar de quem eram os poemas? Foi mal a aleatoriedade, mas é que vai ter um rolê sábado e eu estava pensando em ler um ou dois poemas eróticos e na hora eu lembrei daquele rolê”.
“Foi mal”?! Eu virei referência em declamação de poemas eróticos! Eu estou honradíssimo! E eu lembro do dia, por três motivos: 1) Era despedida do Godfather Blues, o Rato ia estudar em São Paulo e o Tonin ia morar em Londres; 2) Eles escreveram letras nas camisetas, formando a palavra “AMIGOS”, estilo o show dos sertanejos; 3) Eu tenho uma foto (abaixo) - na época, eu só tomava Ypióca Ouro com limão e é isso que tem no copo.
E por que eu parei de escrever um texto para vir aqui falar desse blog (Piroca’s Blog)?
Porque quando eu abri o site para procurar a tal banda que canta com idioma desconhecido, me deparei com o último post feito, de 10 de julho de 2014, do qual eu não tinha a mínima lembrança. Eu mudaria algumas coisas, principalmente vírgulas e pontos, mas é um texto que me chamou a atenção por causa do que eu estava dizendo naquele momento. E é por isso que eu decidi colocar aqui: para que eu sempre me lembre de tentar.
Mesmo quando não tiver ânimo e estiver descascando o rejunte do fundo do poço, eu sempre me lembre de tentar. Não deixar que 10 anos separem uma tentativa da outra, para que eu não me perca dentro de mim mesmo. Afinal, as lembranças que vocês viram agora e verão no próximo texto, aquele que eu estava escrevendo antes, não me ocupam a cabeça por puro saudosismo. Essas lembranças me ajudam a me encontrar, a encontrar o Rafael que se embrenhou e se encravou tão fundo dentro de mim, que me fez esquecer quem eu sou, do que gosto, do que me dá prazer, do que tenho medo, do que tenho saudade, de quem tenho saudade… me fez esquecer de viver.
O passado que veio e que virá não é um simples e triste saudosismo, é a forma de resgatar um Rafael que já viveu e, assim, fazer viver o Rafael do presente, com vontade de tentar, tentar, tentar e tentar.
Deixei o texto original, como escrevi e publiquei em 2014, como uma tentativa.
Tentativas
Rio de Janeiro. Terra já muito letrada e cantada. Terra de Tom Jobim, o grande Maestro Brasileiro, terra de Chico Buarque, terra de Cartola, Vinicius de Moraes, Tim Maia, Erasmo Carlos, Milan Alram, Toquinho, Arpoador, Gávea e Copacabana. Terra da Belle Époque brasileira. Terra de muitas e últimas crônicas. Terra imortalizada em Garota de Ipanema. Terra que em dias aleatórios foi fonte inspiradora de poetas, compositores e artistas de todos os gêneros. Terra de quem viveu sua época sem se preocupar com o que veio antes e o que viria depois.
Terra de quem, como todos, acordava diariamente em um mesmo horário e reclamava de ter que aguentar mais um dia. De quem, possivelmente, com certa tristeza ou desânimo, respondia “Vai indo, do jeito que dá” a todo conhecido que no reencontro perguntava, “E ae, Como anda a vida?”. Terra de quem em algum momento resolveu viver do jeito que dava, sem deixar de pensar que isto poderia ser o melhor a ser feito. De quem passou a viver ao invés de sobreviver. De quem percebeu que buscar o pouco aqui perto é infinitamente melhor do que buscar o impossível lá longe. Terra de quem viveu sua época sem se preocupar com o que veio antes e o que viria depois.
Terra de quem algum dia se sentou ao trono e vislumbrou todos aqueles azulejos, talvez colocados ali aleatoriamente, talvez escolhidos a dedo. De quem, assim como eu, tomou seu café após um almoço com a família e resolveu que o agora deveria ser eternizado. De quem algum dia sonhou que simples azulejos, poderiam em um momento de completo vazio, ser fonte de uma simples e singela crônica. Não sua última, mas a primeira de muitas. Não uma obra prima, mas a que se tornou possível no momento. Não a perfeita crônica de um Nelson Rodrigues ou Fernando Sabino, mas a de quem resolveu fazer. Fazer e ponto final. Saiu do papel e de seus sonhos e materializou-se.
Materializou-se como a vida, que se materializa a cada tentativa. Que diferente de um trabalho escolar, onde rascunhamos e reescrevemos quantas vezes for possível, deve ser construída a cada dia. Vivida do jeito que dá. Vivida para que possa algum dia ser imortalizada. Deve ser tentada e tentada, esperando que nunca chegue ao sucesso. Pois foi tentando que muitos se imortalizaram. E será tentando que um dia farei da minha terra e dos azulejos do meu pequeno banheiro, uma terra a ser lembrada e invejada por muitos.
Ou não, mas continuarei tentando.
Eu acabei de voltar de uma viagem que reproduzi exatamente a mesma goto que fiz há dez anos. E fiquei pensando em como que o nosso eu do passado nunca vai calar a boca enquanto a gente não seguir o que a gente mesmo se propôs hahaha legal demais a crônica etílico-erótica!